Fonte:JUSBRASIL – Data da
Publicação 01/2017
A sistemática do corte de energia
realizado pelas concessionárias em razão da constatação de problemas no
controle/medição da energia elétrica efetivamente consumida nas residências ou
empresas da população brasileira vem acentuando-se, gerando a cobrança de
débito pretérito, muitas vezes em valor elevado, sob a denominação de
recuperação de consumo.
Mais que isso, em boa parte dos
casos, discordando o consumidor da conduta da concessionária de energia
elétrica, a temática vem sendo posta à discussão perante o Poder Judiciário, ao
qual vem sendo concedido o poder decisório final acerca da legalidade do
procedimento adotado e da cobrança efetivada em detrimento do consumidor.
Assim, em suma, o presente trabalho
visa esclarecer, com base na atual jurisprudência e legislação, algumas dúvidas
que ainda permeiam o tema: Em processo judicial, a qual parte incumbe o ônus da
prova da ocorrência de erro na medição de energia e/ou fraude no medidor e da
legalidade da cobrança de débito pretérito à título de recuperação de consumo?
A concessionária de energia pode promover o corte de energia elétrica em tal
caso?
Antes de mais nada, ressalta-se que o
procedimento administrativo de defesa nesses casos é praticamente infrutífero,
haja vista que a “visão técnica” da concessionária, em regra, se mantém
alinhada com o objetivo de obter os recursos financeiros para a concessionária.
Pois bem, inicialmente, será debatida
a questão do ônus da prova.
Primordialmente, merece ser destacado
que a relação entre concessionária de energia e usuário caracteriza a clássica
relação de consumo, com a presença do consumidor e fornecedor, nos termos dos
artigos 2º e 3º do Código de Defesa do Consumidor:
Art. 2° Consumidor é toda pessoa física
ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.
Art. 3° Fornecedor é toda pessoa física
ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes
despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação,
construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou
comercialização de produtos ou prestação de serviços.
Por consequência, caso o consumidor
apresente alegações que, na visão do magistrado, se mostrem verossímeis e
comprovar a sua situação de hipossuficiência de conhecimento e poder de defesa,
o que se mostra presente na quase totalidade das demandas que discutam os temas
que são foco deste trabalho, é permitida a inversão do ônus da prova, como
medida de facilitação da defesa dos direitos de consumidor, nos termos do
artigo 6º, VIII, do Código de Defesa do Consumidor:
Art. 6º São direitos básicos do
consumidor:
VIII - a facilitação da defesa de seus
direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo
civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele
hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências;
O Poder Judiciário tem decidido neste
sentido. A exemplo disso, faz-se necessária a transcrição de trecho do acórdão
prolatado em julgamento do recurso de apelação nº. 70071918767, pela Vigésima
Primeira Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul,
sob a relatoria do Excelentíssimo Senhor Doutor Desembargador Marcelo Bandeira
Pereira, no dia 14 de dezembro de 2016:
Não há dúvidas de que as partes dos
contratos de energia elétrica, ou seja, concessionária e usuário, amoldam-se
aos conceitos de “fornecedor” e “consumidor” estampados pelo Código do
Consumidor. Isso porque os usuários de serviços públicos, no caso, de energia
elétrica, podem e devem ser considerados “consumidores” de serviços, uma vez
que utilizam os serviços públicos como destinatários finais (art. 2°, caput, do
CDC). Já as concessionárias que prestam serviços públicos, especificamente
fornecimento de energia elétrica, enquadram-se no conceito de “fornecedor”,
visto que distribuem e comercializam serviços a um número indeterminado de
pessoas, de forma habitual e mediante remuneração, pois seus usuários pagam
pelo fornecimento do serviço, sendo a atividade, inclusive, voltada ao
lucro. Assim, tem-se que a relação existente entre as partes configura,
de fato, relação de consumo.
Caracterizada a relação de consumo, a
inversão do ônus da prova se opera automaticamente (ope legis), tornando-se
desnecessária a análise da vulnerabilidade do consumidor, que, no caso, é
presumida.
Assim, por consequência, incumbe à
concessionária de energia o ônus da prova da ocorrência do erro na medição de
energia elétrica, especialmente em caso de suspeita de fraude no medidor
instalado na residência ou empresa do consumidor, bem como a comprovação da
exigibilidade de eventual débito que venha a ser cobrado administrativamente
sob a nomenclatura de recuperação de consumo, dívida pretérita. Tal situação é
louvável, ainda mais considerando que dificilmente o consumidor conseguiria, em
razão da sua incapacidade técnica e ausência de conhecimento na área, realizar
a produção de prova negativa.
Acerca da questão da legalidade do débito
estipulado pela concessionária da energia, prova básica que o Poder Judiciário
tem exigido para permitir a cobrança da dívida, administrativa ou
judicialmente, é a comprovação da diminuição repentina do consumo de energia
elétrica no momento apontado pela empresa como da ocorrência da suposta fraude
no medidor.
Ou seja, mais do que a comprovação da
irregularidade no contador de energia, há de haver prova de eventual proveito
econômico que o consumidor possa ter usufruído, devendo a recuperação de consumo
ser estipulada exatamente no valor de tal proveito, sob pena de caracterização
de enriquecimento sem justa causa por parte da concessionária, o que não é
admitido em hipótese alguma.
Neste sentido dispõe o artigo 130 da
Resolução 414/00 da ANEEL:
Art. 130. Comprovado o procedimento irregular, para proceder à recuperação da
receita, a distribuidora deve apurar as diferenças entre os valores
efetivamente faturados e aqueles apurados por meio de um dos critérios
descritos nos incisos a seguir, aplicáveis de forma sucessiva, sem prejuízo do
disposto nos arts. 131 e 170:
I – utilização do consumo apurado por
medição fiscalizadora, proporcionalizado em 30 dias, desde que utilizada para
caracterização da irregularidade, segundo a alínea “a” do inciso V do § 1o do
art. 129;
II – aplicação do fator de correção
obtido por meio de aferição do erro de medição causado pelo emprego de
procedimentos irregulares, desde que os selos e lacres, a tampa e a base do
medidor estejam intactos;
III – utilização da média dos 3 (três)
maiores valores disponíveis de consumo de energia elétrica, proporcionalizados
em 30 dias, e de demanda de potências ativas e reativas excedentes, ocorridos
em até 12 (doze) ciclos completos de medição regular, imediatamente anteriores
ao início da irregularidade; (Redação dada pela REN ANEEL 670 de 14.07.2015)
IV – determinação dos consumos de
energia elétrica e das demandas de potências ativas e reativas excedentes, por
meio da carga desviada, quando identificada, ou por meio da carga instalada,
verificada no momento da constatação da irregularidade, aplicando-se para a
classe residencial o tempo médio e a frequência de utilização de cada carga; e,
para as demais classes, os fatores de carga e de demanda, obtidos a partir de
outras unidades consumidoras com atividades similares; ou
V – utilização dos valores máximos de
consumo de energia elétrica, proporcionalizado em 30 (trinta) dias, e das
demandas de potência ativa e reativa excedentes, dentre os ocorridos nos 3
(três) ciclos imediatamente posteriores à regularização da medição.
Parágrafo único. Se o histórico de
consumo ou demanda de potência ativa da unidade consumidora variar, a cada 12
(doze) ciclos completos de faturamento, em valor igual ou inferior a 40%
(quarenta por cento) para a relação entre a soma dos 4 (quatro) menores e a
soma dos 4 (quatro) maiores consumos de energia elétrica ativa, nos 36 (trinta
e seis) ciclos completos de faturamento anteriores à data do início da
irregularidade, a utilização dos critérios de apuração para recuperação da
receita deve levar em consideração tal condição. (Redação dada pela REN ANEEL
479, de 03.04.2012)
Tal questão é debatida de forma clara
no acórdão prolatado em julgamento do recurso de apelação nº. 70071023766, pela
Segunda Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, sob
a relatoria da Excelentíssima Senhora Doutora Desembargadora Laura Louzada
Jaccottet, no dia 14 de dezembro de 2016:
Ora, a majoração ou redução de 2% no consumo de energia elétrica não
desborda do usual e rotineiro, consubstanciando ausência absoluta de prova, por
parte da concessionária, de que tenha logrado efetivo proveito a consumidora em
virtude da irregularidade que alegou existir na medição. Ao contrário, como se
viu, pois se houve irregularidade no medidor deu-se em prol da concessionária.
Importante ressaltar, nesse quadro, serem cumulativas as exigências de
demonstração de irregularidade no medidor e de proveito do consumidor oriundo
dessa irregularidade, como pontuou a Eminente Desembargadora Marilene Bonzanini
nos autos da Apelação Cível nº 70043320597, “não basta fazer a manipulação do
medidor, é preciso saber fazer”. Recuperação de consumo pressupõe, pois, a
existência de consumo submedido a recuperar, sob pena de enriquecimento sem
justa causa por parte da distribuidora de energia elétrica.
Não por outra razão, o artigo 129 da Resolução n º 414/00 da ANEEL
estabelece que “na ocorrência de indício de procedimento irregular, a
distribuidora deve adotar as providências necessárias para sua fiel
caracterização e apuração do consumo não faturado ou faturado a menor”
(grifei), impondo restrição a essas duas hipóteses como autorizadoras do
procedimento de recuperação.
Em verdade, a Resolução nº. 414/00 da
ANEEL define o procedimento administrativo que deve ser obedecido pelas
concessionárias de energia elétrica em caso de constatação de irregularidade na
medição de consumo, por fraude ou outro problema que tenha ocasionado erro no
controle de consumo de energia pelo consumidor, nos termos do seu artigo 129,
§1º:
Art. 129. Na ocorrência de indício de
procedimento irregular, a distribuidora deve adotar as providências necessárias
para sua fiel caracterização e apuração do consumo não faturado ou faturado a
menor.
§ 1º A distribuidora deve compor
conjunto de evidências para a caracterização de eventual irregularidade por
meio dos seguintes procedimentos:
I – emitir o Termo de Ocorrência e
Inspeção – TOI, em formulário próprio, elaborado conforme Anexo V desta
Resolução;
II – solicitar perícia técnica, a seu
critério, ou quando requerida pelo consumidor ou por seu representante legal;
III – elaborar relatório de avaliação
técnica, quando constatada a violação do medidor ou demais equipamentos de
medição, exceto quando for solicitada a perícia técnica de que trata o inciso
II; (Redação dada pela REN ANEEL 479, de 03.04.2012)
IV – efetuar a avaliação do histórico de
consumo e grandezas elétricas; e
V – implementar, quando julgar
necessário, os seguintes procedimentos:
a) medição fiscalizadora, com registros
de fornecimento em memória de massa de, no mínimo, 15 (quinze) dias
consecutivos; e
b) recursos visuais, tais como
fotografias e vídeos.
Portanto, pode-se afirmar que incumbe
à concessionária de energia produzir toda a prova acerca da ocorrência de
irregularidade na medição de energia na residência ou empresa do consumidor,
pela prática de fraude, através da alteração do medidor, ou por outra
irregularidade, bem como comprovar a exigibilidade de eventual débito fixado
sob a denominação de recuperação de consumo e cobrado em detrimento do
consumidor, sob pena de caracterização de tentativa de enriquecimento sem
causa.
Superada tal matéria, há de ocorrer a
discussão acerca da realização de corte de energia em decorrência da apuração
de irregularidade no controle de consumo de energia no medidor instalado na
residência ou empresa do consumidor. Via de regra, de forma automática,
constatando a ocorrência de alguma irregularidade, a concessionária promove o
corte da energia elétrica.
Contudo, tal prática tem sido
considerada ilegal pelo Poder Judiciário, em razão da impossibilidade da
realização de interrupção do fornecimento de energia elétrica pela
concessionária responsável em razão da eventual existência de dívida pretérita,
a qual viria a ser gerada em caso de confirmação da eventual irregularidade no
controle de energia consumida.
Há de ser destacado que o
fornecimento de energia elétrica à população, assim como outros serviços
básicos, tais como, fornecimento de água tratada e saneamento básico, é
considerado serviço essencial, de modo que não pode ser livremente interrompido
pela concessionária responsável pelo seu fornecimento. A exceção é a
interrupção. A regra é a continuidade do fornecimento do serviço essencial.
Assim está estabelecido no artigo 22
do Código de Defesa do Consumidor:
Art. 22. Os órgãos públicos, por si ou
suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de
empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes,
seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.
Parágrafo único. Nos casos de
descumprimento, total ou parcial, das obrigações referidas neste artigo, serão
as pessoas jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados, na
forma prevista neste código.
PRIMEIRA PARTE
Nenhum comentário:
Postar um comentário