Admissão de prova emprestada em apurações administrativo-Disciplinares
ARTIGO DE DIREITO PENAL
- Leonardo De Tajaribe Da Silva Jr. em 07/08/2020.
É latente na práxis forense que o
acordo de colaboração premiada é importante meio de obtenção de prova nos
processos que envolvem a formação de organização criminosa e demandam
considerável complexidade instrumental – ressalvado o subjetivismo do termo
adjetivo.
Contudo,
sabe-se também que o instrumento probatório formado por depoimentos de acusados
que tem interesse no sucesso na demanda criminal – interesse este compartilhado
e coadunado com o órgão acusatório – apresenta, por si só, percalços de ordem
formal e material e, portanto, calçam discussões acadêmica no plano
dogmático-penal e processual.
Desta forma, o
foco das explanações seguintes gira em torno do compartilhamento de (meios de)
provas obtidas com suporte no conteúdo dos depoimentos que compõe o corpo
probatório do acordo de colaboração, utilizado pelo Ministério Público para
lastrear a tese acusatória no curso de uma investigação ou de uma ação penal.
Ab initio, nos cabe
tingir importantes apontamentos introdutórios sobre o instituto processual a
prova emprestada como meio de compartilhamento de provas já produzidas entre
demandas diversas que guardem entre si alguma relação de reciprocidade,
comumente contida na existência de mesmas partes ou mesmo objeto.
Neste contexto, o
Código de Processo Penal não faz qualquer regulamentação direta ao instituto,
sendo necessário nos socorrer da normativa processual cível, inserida no Art.
372, in verbis:
Art. 372. O
juiz poderá admitir a utilização de prova produzida em outro processo,
atribuindo-lhe o valor que considerar adequado, observado o contraditório.
Deste modo,
a prova produzida em uma ação penal sob o crivo do contraditório e ampla defesa
poderá ser trasladada para outra demanda acusatória, inserindo-se, no mais das
vezes, como prova documental.
Neste sentido, salutar
o entendimento recentemente exposto pelo Superior Tribunal de Justiça no REsp
1.561.021, a seguir ementado, em que a Corte Superior fixou que não há nulidade
contida na condenação baseada em prova emprestada de outro processo, superando
os argumentos defensivos de que as declarações da testemunha que serviram para
fundamentar a condenação não foram produzidas em ação com as mesmas partes, bem
como não foram obtidas com respeito ao contraditório e devido processo legal.
PROCESSUAL
PENAL. RECURSO ESPECIAL. CRIME CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL. PROVA
EMPRESTADA. DEPOIMENTO DE TESTEMUNHA COLHIDO EM AÇÃO PENAL DIVERSA. NULIDADE.
INEXISTÊNCIA. MANIFESTAÇÃO DA DEFESA. OBSERVÂNCIA DO CONTRADITÓRIO. JUNTADA DE
DOCUMENTOS EM LÍNGUA ESTRANGEIRA. NULIDADE AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO DO
PREJUÍZO. RECURSO IMPROVIDO. 1. No processo penal, admite-se a prova
emprestada, ainda que proveniente de ação penal com partes distintas, desde que
assegurado o exercício do contraditório. 2. Inexiste nulidade na condenação baseada em
depoimento de testemunha colhido em outro processo criminal, uma vez
oportunizada a manifestação das partes sobre o conteúdo da prova juntada,
resguardando-se o direito de interferir na formação do convencimento
judicial. 3. A norma inserta no art. 236 do CPP não impõe
que sejam necessariamente traduzidos os documentos em língua estrangeira,
autorizando a juntada dos mesmos, mesmo sem tradução, se a crivo do julgador
esta se revele desnecessária, ressalvando-se, obviamente, que tal medida não
pode cercear a defesa dos acusados (REsp 1183134/SP, Rel. p/ Acórdão Ministro
GILSON DIPP, SEXTA TURMA, DJe 29/06/2012). 4. Não se lastreando a sentença
condenatória nos documentos contestados pela defesa, redigidos em língua
estrangeira, ausente a demonstração do efetivo prejuízo, incidindo o princípio
pas dnullité sans grief. 5. Recurso especial improvido. (grifo nosso)
Mister se
faz ressaltar que o tema do compartilhamento de provas testemunhais torna-se
ainda mais controverso no âmbito das provas emprestadas em âmbito criminal,
ante a dissonância contida no âmbito de produção probatória – prova produzida
para um processo sendo utilizada em ambientes distintos de sua produção – e a
ausência de observância dos postulados fundamentais.
Neste
seguimento, importante cátedra de Aury LOPES JR. (2020, p. 427), in verbis:
Igualmente
insuperável é o segundo aspecto a ser considerado: a violação do contraditório
(e da ampla defesa, dependendo do caso). Não há como negar que a prova
produzida em um processo está vinculada a um determinado fato e réu (ou
réus). Daí por que, ao
ser trasladada automaticamente, está-se esquecendo a especificidade do contexto
fático que a prova pretende reconstruir. É elementar que
uma mesma prova sirva para reconstruir (ainda que em parte, é claro) diferentes
faces de um mesmo acontecimento.
Em outras
palavras, o diálogo que se estabelece com a prova é vinculado ao fato que ser
apurar ou negar. Logo,
diferentes diálogos são estabelecidos com uma mesma prova quando se trata de
apurar diferentes fatos. É uma relação semiótica completamente diversa. A prova
emprestada desconsidera isso e causa sérios prejuízos para todos no processo
penal. (grifo nosso)
Destarte,
pode-se entender que, confrontando-se os enunciados jurisprudenciais
consolidados pelas Cortes Superiores pátrias com a brilhante análise
colacionada do Prof. Aury Lopes Jr, é possível concluir que apesar dos
Tribunais oportunizarem as partes a manifestação sobre a prova emprestada no
momento de sua introdução em ambiente diverso de sua produção – o processo
originário -, como forma de legitimar – ou simular – o exercício do
contraditório, tal comportamento não é bastante para consolidar a harmonia do
instituto probatório com os axiomas processuais que garantem a higidez da
persecução criminal.
Neste contexto, adentrando ao tema inicialmente proposto para esta breve
explanação, cabe trazer julgamento recentemente proferido pelo Supremo Tribunal
Federal na PET 7.065/DF, em que a Suprema Corte brasileira fixou a compreensão
anteriormente adotada de que os depoimentos produzidos em acordo de colaboração
premiada podem ser compartilhados para a apuração de prática de ato de
improbidade administrativa.
A
demanda tratava de ação penal visando a persecução da prática de crime cometido
por Governador de determinado estado da federação, na qual houve pedido do
Ministério Público Estadual de compartilhamento do conteúdo da colaboração para
investigar a prática de improbidade administrativa apta a ensejar ação
cível-administrativa pelo ente legitimado.
Doutro lado, o
Superior Tribunal de Justiça, em harmonia com o julgado supra, também admite a
adoção de provas emprestadas em processos administrativos disciplinares, ainda
que estas tenham sido fabricadas na persecução criminal, conforme dita o
enunciado do verbete sumular nº 591, in
verbis:
É permitida
a “prova emprestada” no processo administrativo disciplinar, desde que
devidamente autorizada pelo juízo competente e respeitados o contraditório e a
ampla defesa.
Nota-se,
ainda, que a Corte Superior assevera a garantia do contraditório e ampla defesa
para que se estenda a aceitação do compartilhamento de provas. Entretanto,
conforme apontado anteriormente, este não parece ser um problema de fácil
superação, visto que a mácula ao contraditório contida no empréstimo probatório
de provas produzidas no nocivo ambiente da persecução criminal não é
transpassada pela simples abertura de vista as partes.
Destarte, o
processo penal é espécie de intervenção estatal de ultima ratio porque
compõe em seu leque instrumental reprimendas concretas que invadem sobremaneira
outras searas punitivas, como a própria condenação administrativa.
Imagine-se um
processo administrativo disciplinar visando a imposição de penas administrativas
quando o agente já perdeu o cargo público como consequência da condenação
criminal. Perda de objeto? E se a prova criminal houver sido compartilhada
antes do trânsito em julgado da sentença penal?
À vista disto, o
problema da recepção jurisprudencial ao instituto das provas emprestadas em
matéria criminal para a apuração de fatos administrativos encontra percalços
dogmáticos diversos, insuperáveis pela simulação do contraditório. Assim, a
solução que aparenta maior lógica sistêmica com o ordenamento jurídico
brasileiro indica o sobrestamento dos procedimentos penalizadores que possam
conflitar com a ação penal, de forma a minimizar a ofensa aos princípios
fundamentais norteadores do devido processo legal, afetados pelo compartilhamento
de provas.